Publicado em: 00/00/0000
Há um antagonismo público, mais ou menos consensual, entre treinar e ensinar, como se uma coisa e outra só servissem os interesses de um grupo em particular (concretamente, “treinam-se os profissionais e ensinam-se os que estão em formação”).
Mas se ambos têm como objetivos transmitir informação, compartilhar conhecimento e fazer evoluir outras pessoas, seja individualmente seja coletivamente, como podem ser colocados em polos separados, como se nada tivessem a ver um com o outro, como se fossem até incompatíveis? Sempre me fez confusão esta discussão. Dei (e dou) voltas a isso e uma das conclusões a que cheguei é que o erro pode nem estar no significado que se dá ao ensinar e ao treinar, mas sim precisamente no uso incorreto dessas duas palavras. E se ninguém ensinar ou treinar, mas simplesmente orientar? Há ensinamento ou o que há é aprendizagem, independentemente do ensinamento? A aprendizagem não poderá ocorrer sem ensinamento? A aprendizagem surge logo, automaticamente, quando nos transmitem a informação ou apenas quando percebemos o que nos foi transmitido? Aquilo que adquirimos por nós mesmos não é apreendido mais eficazmente do que aquilo que adquirimos através dos outros?
No livro “The Inner Game of Tennis”, a certa altura o autor escreve o seguinte: “Sometimes my verbal instructions seemed to decrease the probability of the desired correction occurring (tradução: às vezes, as minhas instruções verbais parecem diminuir a probabilidade de a correção desejada ocorrer)”. Mais à frente, W. Timothy Gallwey defende que “demasiada instrução é pior do que nenhuma”, duas suposições que construiu depois de ver como um tenista evoluía mais depressa a acertar corretamente na bola com a raquete se encontrasse as respostas (mesmo inconscientemente!!) por ele mesmo em vez de ser através das indicações que recebia. O autor considera que as instruções iriam constrangê-lo, fazê-lo concentrar apenas nos erros e que isso tornaria mais difícil a correção. Não sei se Gallwey tem toda a razão – alguma há de ter. Mais do que isso: não tenho certezas, com base científica e experimental, se este método é realmente o mais eficaz. Mas, no mínimo, merece reflexão. Por exemplo: o mesmo ensinamento não vai ter as mesmas consequências em todos os indivíduos (isto é consensual), logo o sucesso do processo de aprendizagem não depende mais do aluno do que da capacidade do professor/treinador? Ensinar implicará automaticamente aprender? E se o que queremos é que o outro aprenda, o que importa é o ensinamento em si (a informação) ou a aceitação de quem o recebe? Qual é a melhor maneira de alguém aprender, realmente? O assunto torna-se interessante e mais complexo do que pode parecer à primeira vista.
Isto é válido para tudo e o futebol (o aprender a jogar) não é exceção. Primeiro ponto: é mais ou menos unânime quando se diz que o principal mérito de um treinador – o trabalho mais importante, talvez – é CONVENCER os jogadores de que jogar da maneira X é melhor, de que fazer Y será mais eficaz, de que apostar pela estratégia Z garante mais hipóteses de vitória. Ora, teoricamente a eficiência deste processo implica ensinamento e treino, mas isso talvez seja insuficiente para ter o sucesso desejado porque estamos a partir do princípio de que tudo depende de quem treina. E a abertura de quem está do outro lado não conta? Como é que esse alguém será convencido? Através de quê? Da informações que recebe? É com o treino, com soluções, com certezas que se convence alguém (que se ensina) ou esse convencimento fica mais fácil com sugestões, com perguntas e com o recurso à capacidade de quem recebe de pensar e refletir? No fundo, quando tentamos convencer alguém de algo, o que estamos a fazer não é orientá-lo para outros caminhos, esperando uma resposta que venha de encontro ao que pretendemos? É mais eficaz impor ou a imposição prejudica o ensinamento? Ou convencemos ou impomos. As duas são incompatíveis.
(Pensemos em nós por um momento. Aprendemos mais quando somos obrigados a ouvir e a receber informação ou quando queremos e estamos predispostos a aprender, a evoluir e a crescer? Aprendemos mais depressa sobre um assunto que não nos interessa ou sobre um que nos interessa?)
Já escrevi como é importante ter os treinadores certos para os diferentes escalões de formação, porque não é igual treinar crianças de 8 anos, jovens de 14 e adolescentes de 18. Mas essa convicção não se relaciona com o conhecimento, ou a falta dele. Serão os que sabem mais (acumulam mais informação) os que mais vão ajudar os alunos ou isso será mais provável com alguém que pode não saber tanto, mas que tenha a capacidade de os orientar melhor, de lidar melhor com eles, de perceber as necessidades, os constrangimentos e as vontades? É difícil concordar que é o conhecimento que torna alguém mais capacitado, se esse alguém não for capaz de o transmitir e o enquadrar no contexto em que está inserido e se não tiver sensibilidade para perceber o que o rodeia. Não as respostas dele, o conhecimento dele, que importam. O conhecimento pode ser, portanto, uma desvantagem, se não for bem aplicado. Será uma armadilha se nos faz pensar que como temos as respostas temos que as dar. Faz-nos esquecer a ignorância de quem tempos à frente. O objetivo de quem treina (orienta) deve ser autonomizar (tornar autônomo) em vez de automatizar (tornar mecânico) e isso não ficará mais perto de ser concretizado com perguntas do que com respostas? Talvez a principal função de quem tem a função pedagógica, de liderar, não seja limitar-se a responder aos problemas e corrigir os erros. Talvez o mais decisivo seja, por exemplo, identificar o que está mal, formular as perguntas e assim orientar para a(s) resposta(s). Se calhar, questionar é melhor do que responder, se o objetivo é levar os outros a aprender e a evoluir, se a prioridade é estimular o raciocínio, o pensamento, a criatividade. Se calhar, o mesmo problema tenha várias soluções e não apenas aquelas que o professor e o treinador pensam.
Claro, podemos sempre discutir se esta abordagem é a mais indicada para todos. Possivelmente, não. Somos todos diferentes. Mas se não é, também não será porque, pelo caminho, de alguma maneira se adulterou o que é ensinar e treinar, levando essas palavras demasiado à letra? Não será porque se pensou que ensinar e treinar é ter todas as respostas, pensar pelos outros e facilitar-lhes a vida? Se o que queremos é criar e promover a autonomia, esta abordagem pode não ser a mais indicada para todos no imediato, mas talvez seja a mais eficaz e produtiva sempre que a prioridade é o médio e o longo-prazo. Talvez seja a que nos prepara melhor para os desafios futuros. O que nos faz ser proativos e encontrar soluções, em vez de esperarmos que alguém nos dê as respostas, não é o melhor para nós? Se calhar, potencializar o melhor de alguém não tem a ver com transmitir-lhe mais informação, mas sim com dar-lhe problemas, fazer-lhe perguntas e dosar a informação. Para tornar alguém melhor talvez seja suficiente mostrar-lhe outras coisas. Dizer-lhe outras coisas. Talvez um treinador ajude o jogador a fazer mais coisas, às vezes umas que nunca tinha feito, porque, simplesmente, lhe abriu os horizontes e o pôs a pensar, sem lhe ter ensinado nada por aí além. Ou melhor, ensinou-lhe o mais importante porque o orientou para outros caminhos. Sim, são muitos “talvez” e são muitas perguntas. Mas alguém já disse: “Com perguntas, avanças; com respostas, retrocedes”.
Por Vasco Samouco.